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29/04/2008

Alquimia

As palavras essenciais e justas que gostaria de escrever estão de tal forma enterradas na minha limitação que nem lhes consigo chegar. Sigo pelas figuras de estilo, as comparações, as imagens, as metáforas, pelo recurso a esta redundância humana de buscar pelo lado de fora uma tradução dos estados de alma. Um estar do avesso.
Sinto uma dor magoada como se tivesse sido alvejada, como se tivessem disparado um tiro certeiro no meu coração e a bala ficasse alojada numa zona de fronteira entre a morte e a esperança de vida presa por um fio. E esta parece ser uma situação deveras dolorosa, a incerteza da permanência do lado de cá e a possibilidade de uma passagem para o outro lado.
Mas é um desafio. Há um coração que teima em bater, em vibrar, em mostrar que tem força e dignidade para ir à luta. E aquele objecto dual, estranho, desconfortável, ali alojado, não pode ser subestimado. Há um prenúncio de vida nele, mais do que de morte. O coração tem que cuidá-lo, acomodá-lo, para que se mantenha no mesmo lugar. Um batimento mais forte, e poderá deslocar-se fatalmente; uma vibração a mais, e o fio de vida poderá partir-se. E o coração, sabendo ser este o caminho a seguir, a busca do equilíbrio entre forças primordiais aparentemente antagónicas, recolhe-se em silêncio trabalhando na alquimia. E corajoso, seguro do Amor que o anima e que só ele sabe sentir, confia que no tempo necessário, tal como uma impureza dentro de uma ostra, a bala nele alojada se transformará em pérola.

24/04/2008

Sem medida

Amo o amor com ciúme, a paixão que incendeia, emoções à flor da pele. O amor vivido a desoras, lembrado em cada detalhe, ansioso pelo encontro, pela voracidade dos beijos. O amor que é cegueira, que endeusa o bem amado, que se enfeita de mil flores e dança na luz das velas. O amor feito de olhares, de palavras sussurradas, de gemidos musicados, de odores viciados e carícias de mãos dadas. O amor atento e presente, que é justo com a tristeza, que sabe a risos e lágrimas, que dói sem nunca magoar. O amor que sonha acordado, que faz projectos do nada, que é desenho ou é tela, vestido de cores quentes. O amor que se faz inteiro, sem pudores, nem reservas, que se entrega e que possui, que invade e que fascina. O amor que se reescreve, que a cada dia renova, que esquecendo a sua fome, nutre as almas amantes de eterno e de fugaz. Amo o amor desmedido. Amo quem ama assim.

23/04/2008

Redundância

Naveguei por um milhão de palavras. Reconheci-me no clichê. Está tudo sentido. Tudo dito. As palavras gastas. A emoção banalizada. A novidade envelhecida. Ao espelho reflecte-se um déjà vue, déjà dit, déjà ecoutè, déjà touchè, déjà aimè, déjà forniqué... Déjà tout! Há um pulsar febril na constatação do meu ser redundante. Ferida, agonizante, morre-me a inocência, devagar...

Solidão

Solidão não é a falta de gente para conversar, passear, namorar ou fazer sexo… Isso é carência.
Solidão não é o sentimento que experimentamos pela ausência de entes queridos que já não podem mais voltar… Isso é saudade.
Solidão não é o retiro voluntário que às vezes nos impomos para realinhar os pensamentos… Isso é equilíbrio.
Solidão não é o claustro voluntário que o destino nos impõe compulsoriamente, para que revejamos a nossa vida… Isso é um princípio da natureza.
Solidão não é o vazio de gente ao nosso lado… Isso é circunstância.
Solidão é muito mais do que isso.
Solidão é quando nos perdemos de nós mesmos e procuramos em vão pela nossa Alma.

Chico Buarque de Holanda

18/04/2008

À janela

Quando olho aqueles dois rebentos de sardinheira a despontar docemente, penso que somos nós a florir.

15/04/2008

Pensar o futuro

No passado Domingo, no programa "E Depois do Adeus" da RTP1, o tema foi os idosos e todos os problemas e necessidades que os afectam, os maus tratos, o abandono, a solidão, a doença, a precaridade económica, bem como a ausência de estruturas e instituições que, do ponto de vista humanístico, social e clínico, possam dar o apoio que todos os idosos de hoje merecem e que todos NÓS, os do futuro, mereceremos. Já em Janeiro eu tinha aqui tocado ao de leve neste assunto.
Às vezes distanciamo-nos deste problema, porque não parece ser a nossa realidade pessoal, é a realidade de outros. Não obstante, esses outros também já foram jovens, alegres, saudáveis e, provavelmente como muitos de nós, também fecharam os olhos a estas questões.
A qualidade do nosso futuro pessoal e a qualidade de vida que queremos legar às crianças e jovens de hoje, não pode ser adiada, nem as opções e decisões para que isso aconteça deixadas apenas ao critério de quem governa (e este governar não é apenas político). A nossa inércia cívica terá custos elevados que nos serão inexoravelmente cobrados.
Quando era pequena, da simpatia que nutria pelos velhinhos com quem me cruzava, brotou em mim o sonho de ganhar a lotaria e mandar construir uma aldeia com um grande parque cheio de lagos e jardins, para onde as pessoas mais velhas pudessem ir viver tranquilamente em casinhas, simulacros dos seus próprios lares, onde tivessem quem cuidasse delas. Uma espécie de resort com residências assistidas, dos dias de hoje.
Naturalmente, naquela época o meu espírito inocente e compassivo construiu um projecto sem fins lucrativos; a intenção era a de proteger a doçura da velhice de todas as agressões, proporcionando conforto e dignidade a todas as pessoas nesse tão frágil período de vida.
Não sou caso raro. Ao longo do meu caminho cruzei-me com muita gente que confidenciou ter tido o mesmo tipo de idealismo infantil. Pergunto-me apenas porque o perdemos (ou o adulteramos) na maturidade, quando é precisamente esta a altura em que temos ferramentas para trazer o sonho à realidade.
Na verdade, não posso dizer que o tenha perdido. Ainda hoje penso que se ganhasse o "Euromilhões" (sinais dos tempos...), a minha bússola interna apontava para aí e para outras mais valias que fui, entretanto, acrescentando ao meu sonho virginal.
O que receio é que, para além de nunca vir a ganhar o dito baú do tesouro..., o tamanho da minha ambição onírica seja inversamente proporcional à minha dinâmica de acção, e que eu acabe por ver morrer um sonho sem sequer o ter deixado viver.

13/04/2008

Sem palavras

Não, não há palavras para justificar a descriminação, a omissão, o ódio. Nascem pequenos entre paredes e propagam-se gigantes nos Iraques do mundo.

10/04/2008

Sem tino

Devia ser proibido haver noites que nos tiram o sono, que acabam tristes e nos roubam a alegria da manhã.

Em infracção biológica

Não há palavras que me animem quando sou confrontada com a minha desimportância. Ou, num contexto mais objectivo, quando sou excluída por ser infractora e não ter cumprido a minha natureza. Um dos comentários parentais que mais me marcaram foi o de que eu não era alvo da mesma atenção e número de visitas que os meus irmãos, "porque eu não tinha filhos". De igual modo, diversas vezes deixei de ser convidada para programas, passeios, festas, onde a condição de acesso era a prole. "Desculpa, mas adultos sem filhos não entram...". Se eu era chegada aos pais, fosse por que laços fossem, se sentia afecto pelas crianças, isso não contava. A minha presença no grupo teria que ser justificada, não pela afectividade, mas pela prole, caso contrário eu estaria a mais, seria um incómodo...
(Em certas circunstâncias cheguei mesmo a pensar pedir emprestada uma criança a alguém, porque assim estaria garantida a minha validação, o meu acesso a toda uma panóplia de entretenimentos infantis, bolos e balões.)
Pelo que oiço das minhas amigas também em infracção biológica e igualmente desimportantes, este cenário parece que se vai repetir até à eternidade. Não ganhámos valor nem qualquer direito a entrar pela porta da frente no pedo-mundo, pelo facto de já termos perdido horas de sono, sossego e paciência com sobrinhos verdadeiros e postiços...

Por isso se calhar o meu papel não é esse, não é o de ser importante, é o de ter utilidade. Seguindo o princípio da física quântica que diz que um objecto só existe quando olhamos para ele, começo a acreditar que eu também só existo quando sou útil. Mas no meu quotidiano de inutilidade, não sou tida nem achada.
Talvez seja esse o meu maior defeito, a disponibilidade. Estou quando é preciso. Se eu fosse um número, seria o 112; uma sigla, SOS. Como pessoa, sou idiota. Mas às vezes canso-me.

09/04/2008

"Sou Como Tu"

Sou Como Tu

Esta é a nova escultura que enfeita a Avenida da Liberdade, desde o passado dia 1. Da autoria de Rui Chafes, tem um nome que apela a um exercício de identificação por parte de quem a observa. Tenho que ir vê-la de perto, parece fascinante.

Emergindo do solo, a escultura integra-se na área ajardinada, e lembra, segundo o artista, "uma coluna de fumo, evocando uma imagem de leveza" que visa proporcionar "um lugar de paz e silêncio" no meio do constante movimento da capital.
Para o escultor, nascido em Lisboa, em 1966, "a escultura em geral, e a escultura pública em particular, reportam-se à dimensão espiritual da humanidade. Assim, cumpre a função de elevar as pessoas".
in Notícias.rtp.pt - fonte Agência Lusa

Um toque de João Semana

Seria o desejável, mas tenho noção de que a velha personagem de Júlio Dinis teria uma grande dificuldade em adaptar-se a uma urbe, onde o número médio de pacientes ultrapassa em larga escala a capacidade de uma ajustada prestação de cuidados por parte dos (sempre escassos) profissionais de saúde. No entanto, há medidas que trazem um valor acrescentado no sentido da ampliação da oferta de serviços aos utentes, permitindo que estes se sintam mais acompanhados, mais valorizados, menos isolados na sua fragilidade.
Li hoje no Público que os médicos de família vão voltar a fazer consultas domiciliárias à generalidade dos utentes. Não obstante todos os argumentos que os defensores dos "copos meio-vazios" possam invocar, avalio a notícia pela sua vertente humanística. Parece-me tão importante esta reaproximação entre clínico e paciente, este contacto personalizado de cariz familiar! Isto é fundamental nos processos terapêuticos. E sem dúvida, este nivelar de posições (não sou eu que faço um esforço para ir ao médico, é ele que se disponibiliza a vir até mim), humaniza as relações ao mesmo tempo que permite ao clínico ter uma noção mais exacta do ambiente e do impacto que este possa ter sobre o paciente e o problema que manifesta.
Este é o segredo do processo de cura, a atenção e o conhecimento global para com o Ser que se apresenta ao curandeiro, o tratamento desse Ser como um todo e não como uma parte.

06/04/2008

Gatarela

O gato empoleirado no muro preguiça solarengo. A cabeça erguida em direcção ao rio, os olhos semicerrados pela luz, rrrooommm. Olho-o fixamente, centro-o no meu pensamento, chamo-lhe a atenção. Ele vira a cabeça e fita-me. Ficamos assim os dois parados neste sossego, entre o óbvio e a incompreensão. Há um merge; ele entra no meu mundo e eu no dele. Ele humano, eu felina. Comunicamos assim sobre o irreal de ambos os universos. Ele agora tem braços compridos que estende em direcção a mim, envolvendo-me num aconchego peludo. Involuntariamente sinto a minha língua áspera a passar pelos meus bigodes. Não falo, ronrono. Gozo a metamorfose, arqueio-me e estico-me prazeirosa. Sinto o movimento e a leveza de cada vértebra a ocupar o seu lugar. Ele passa as garras pelo meu dorso, pela minha cabeça, sussurrando pch, pch, pch. Eu oiço peixe, peixe, peixe... As minhas narinas gulosas sentem esse aroma no ar... alguém está a grelhar o meu almoço, rroommm... De repente, um grito infantil, estridente! Os braços felinos encolhem-se no retomar da sua forma original; a minha língua amacia, o meu ronronar faz-se suspiro. Tique taque, tique taque, neste universo há horas para tudo. Ao meio-dia tudo volta ao seu lugar.

04/04/2008

Teatro inglês (part 2)


Durante este fim de semana, nos Lisbon Players, serão apresentadas as short plays: "Tone Clusters", de Joyce Carol Oates (encenação de Marie Benichou), "Recklessness", de Eugene O'Neill (encenação de Henrique Macedo) e "The Bear", de Anton Chekhov (encenação de Elizabeth Bochman).
Entrada gratuita.
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Rua da Estrela, 10 - Lisboa
Telef: 213961946