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08/01/2009

Desafectos

Eu estava a falar ao telemóvel, à frente da estante dos livros de psicologia. Já tinha escolhido alguns livros e tinha nas mãos o "Síndroma de Peter Pan". Percebi a presença de um rapaz, que me observava com alguma insistência.
Quando desliguei, ele abordou-me de imediato.
- Desculpe, não quero incomodar mas vejo que pegou no "Síndroma de Peter Pan"...
Imediatamente pensei que era o único exemplar e que eu o tinha retido enquanto tagarelava. E que ele ali, pacientemente, estava à espera que eu desligasse para pedi-lo. Ía estender-lhe o livro, mas ele continuou:
- ... sabe o que é, tenho 29 anos e uma grande dificuldade em relacionar-me, em sociabilizar com mulheres...
Depois de um segundo de espanto, cruzou-me o espírito que ele me tomasse por psicóloga, por ver-me na secção de psicologia. Sorri-lhe.
- Sim, percebo, mas olhe que eu não sou terapeuta...
Num repente, avançou para mim exaltado.
- Eu não quero nenhuma terapeuta! Quero alguém que me oiça, que me compreenda... quero uma namorada com quem conversar, com quem partilhar a vida! Quero uma mulher ao meu lado!
Assustei-me mas tentei reagir com naturalidade.
- Lamento, não posso ajudá-lo.
Peguei nos livros e dirigi-me à caixa. Ele continuou, elevando a voz.
- Não se vá embora! Não faço mal a ninguém, só quero conversar... porque é que ninguém quer falar comigo?!
Já na caixa percebo que uma funcionária o acompanha até à porta. A senhora que me atende diz que "é assim todos os dias, há anos...".
- O que será que pretende encontrar, vindo aqui dia após dia? - pergunto.
E ela sorri.
- Uma namorada...
- Mas sabe se ele tem família, se é acompanhado?
- Sim, tem pais, vive com eles. E até já andou a fazer terapia... Mas parece que não resultou!
Senti angústia. Era tão palpável a fragilidade psíquica provocada pela ausência da experiência amorosa, pela frustração, pela solidão. Por segundos fiz o paralelismo com a solidão de C., que o levou ao suicídio com a mesma idade.
E se um dia ele vier a molestar alguém, na ânsia de ser abraçado? Se se converter numa ameaça nunca saberá o que é viver o amor, encontrar uma mulher com quem partilhar a vida.
Ao sair ainda o vi, de um lado para o outro na rua, balbuciando entristecido.
- Eu só quero uma namorada! Porque é que não consigo ter uma namorada?

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