Estava apenas a ver um filme, o "Elefante". Algo que ultrapassa a minha incompreensão, este gene da loucura que leva dois jovens munidos de armas a entrarem na escola e matarem quem encontram pela frente. Seria tão mais fácil entender essa crueldade se a justificasse pela ausência total de sensibilidade...
Só que antes, um deles toca piano. Quem aprende a tocar piano insensivelmente?
E as duas músicas que toca fazem-me chorar. As minhas lágrimas correm em silêncio para não perturbarem o aflorar das memórias que aqueles sons me trazem. Saudades de mim. Saudades dela.
E de novo eu estava ali, aos 12 anos, com o meu robe cor-de-rosa almofadado, sentada ao piano, as mãos a deslizarem pelo teclado. E a minha mãe ao meu lado, apontando-me com o bico do lápis as notas na partitura.
"Für Elise". Tocava-a melhor nessa idade do que hoje. Na verdade, hoje só a toco pelos sentidos, pela memória; as minhas mãos há muito que a esqueceram.
Saudade de mim, disse eu. Na verdade não sei se é de mim. Talvez seja apenas das possibilidades que eu tinha nessa altura, do potencial que a vida parecia oferecer. Aquilo em que investi durante anos desvaneceu-se. O piano, o violoncelo, o bailado... Fazemos opções numa idade em que não temos maturidade sequer para opinar, julgando que incessantemente a vida nos vai presentear com inúmeras e melhores possibilidades.
Saudade dela sim. Da forma como emocionava o meu coração juvenil quando tocava; como me inundava com a melancolia e o pesar do "Noturno" de Chopin. Gostava tanto de me deixar hipnotizar pelos seus dedos volteando, demorando-se sobre o teclado...
Seis horas por dia, dizia, era o que o meu avô a obrigava a praticar. E eu pensava "nunca vou ser capaz de estar seis horas por dia a fazer o que quer que seja". Mas estive sim, bem mais do que isso, durante anos, a fazer coisas para as quais já não me sinto talhada, que apenas me despertam enfado.
Saudade, da oportunidade que tive para gravá-la enquanto tocava, para ficar com essa recordação materializada. Tantas horas de trabalho, tantas horas de escuta, e nem um único segundo registei... Quantas e quantas vezes quis ter à mão uma cassete, um CD, que me trouxessem de volta esses sons, me fizessem reviver esses momentos.
Não pensei que pudessem chegar-me pelas mãos de um assassino, ainda que ficcionado.
Mas as memórias não escolhem, abrem caminhos.
Talvez um dia me cheguem, vivas, pelas mãos do divino.
3 comentários:
e eu a ver-te ali diante do filme. que bonitas estas imagens.
Alguma coisa gravaste. Bem a fundo na carne. Ainda vivas com o teu pulsar. E perpetuadas pelo teu alcance.
Feliz Natal
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