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17/03/2010

Coisas que não somos

Alguns meses antes de a minha mãe morrer (ainda nem estava diagnosticado o cancro), participei numa formação sobre estas questões e percebi de uma vez por todas como é importante falar da morte sem rodeios, sem considerar que é mórbido ou um assunto tabu. Sinceramente, perdi a tolerância para estas atitudes de "faz de conta".

Já aqui falei sobre isto. A minha mãe era uma pessoa muito activa e imaginativa, e em tudo quanto era folha de papel, blocos, agendas, caderninhos, escrevia projectos, histórias, pensamentos, experiências de vida... E coleccionava coisas de viagens, guardanapos, pratinhos, souvenirs. Guardava tudo. Esse apego é contagioso, porque quando alguém morre, quem fica apega-se a essas mesmas coisas, porque personifica nelas o ente querido, e é um grande sofrimento libertar-se delas. Por isso, entre outras coisas, pedi-lhe que organizasse a sua papelada, que deitasse fora o que era supérfluo, porque iria custar-nos muito decidir o que fazer-lhes, quando ela morresse.
Valeu-me o facto de ela ser uma pessoa sensível a estas questões, só não me valeu o curto tempo que teve para cumpri-las. Mas mesmo assim, alguma coisa foi feita e o simples facto de termos falado sobre o assunto deu-me maior liberdade de acção.

Olho à minha volta e vejo que estou perante um ambiente análogo. Papéis, recortes, canetas, revistas, chaves, fios, caixas cheias de tudo e de não sei quês... Ele identifica-se com as suas coisas como partes integrantes da sua identidade, o que, a meu ver, o leva à crença de que não pode viver sem elas, de que se sentirá desvinculado de si mesmo na sua ausência.
Como poderei então eu, algum dia, desapegar-me da sua identidade, do que ele é?
Quanto a mim, quando eu morrer pode ir tudo para o lixo, mesmo as coisas de que mais gosto. As coisas só valem pela utilidade que têm enquanto eu viver aqui, depois deixam de me ser úteis e não me revejo, nem me quero perpetuar nelas. O que fui, sou, está no que fiz, não no que tenho e nem sequer nas minhas palavras.

2 comentários:

Unknown disse...

Excelente blogue, muito bem escrito (e descrito). Continua... E tens toda a razão: nós não somos coisas. Embora por vezes pensemos que a nossa essência está projectada em determinado objecto, tal não corresponde à verdade. Mandem as coisas para o lixo e preocupem-se mais com as pessoas!!!

Doramar disse...

Obrigada pela visita :-)