Lembro-me da tua indecisão em aceitar o convite para vir a Lisboa. Vinhas dar formação em cuidados paliativos. Nessa altura, ainda pouco se falava sobre o assunto.
Estiveste quase para não vir. Não sabias se conseguirias fazer um bom trabalho, porque te iria exigir uma imensa entrega. Tu estavas em estado de choque e com uma enorme dificuldade de lidar com as tuas emoções.
Na semana anterior tinham-te diagnosticado uma neoplasia na perna. Como médico sabias que o veredicto era a amputação. Quando regressasses de Lisboa terias que enfrentar essa perda.
Sentiste-te frágil, estavas com medo. Desta vez era a tua vida.
E ainda assim sublimaste-te e vieste, generosamente, e nos privilegiaste com a tua sabedoria e a tua presença compassiva, tão dignamente.
Dificilmente alguém poderá esquecer como estiveste em dádiva em todas as horas. Como as tuas palavras eram veiculadas pelo amor à tua missão e àqueles de quem cuidavas. Tocaste-nos de forma plena, profunda, partilhando as tuas vivências, as histórias de vida de tantas pessoas em fase terminal que ajudaste a partir e a quem proporcionaste viver em dignidade os últimos momentos. Foi a tua serenidade, a cadência afectuosa da tua voz, a grandeza espiritual que nos foste revelando ao longo dos dias, que enchiam a sala de um silêncio de escuta que jamais testemunhei.
Muitas vezes ao olhar para ti senti a presença de uma vontade numinosa levando-me para outro estado de consciência, o único estado onde a força Curadora se manifesta e actua. O lugar do nosso encontro.
E à noite, em silêncio, orava por ti e deixava que o espírito me guiasse.
Em cada momento de comunhão bebi as tuas palavras e apreendi a grandiosidade do amor, desse amor incondicional que escuta sem julgamento, que se entrega por inteiro, que tudo comunga, tudo partilha, tudo aceita, tudo perdoa, tudo cura.
Reaprendi que o grande momento de reconciliação com a vida é o de um Ser face à iminência da morte. A morte do outro, a nossa morte. A derradeira oportunidade de transformação.
É em presença dela que nasce a grande oportunidade de um Ser se revelar em plenitude, de se conciliar com a sua vida, com os outros, de deixar cair todas as máscaras, de se ver despido delas e aceitar-se, de abrir o coração à verdade e ao amor, de falar o que nunca foi falado, de perdoar e perdoar-se, de desfazer os nós de enganos que se foram tecendo no cordão da vida.
Disseste que as palavras curam, que é curando o outro que nos curamos também a nós. Que a cura é um acto de amor e que o amor é um milagre. Que em todo e qualquer momento o que mais queremos, a única coisa que realmente queremos, é sermos amados.
E quando as palavras faltarem ou já não forem necessárias, nunca deixes de dizer Amo-te. Diz Amo-te com o corpo, diz Amo-te com os sentidos, diz Amo-te com a alma. Mas não páres de o dizer até ao fim.
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Liguei-te com o coração nas mãos.
- H., diz-me como estás!?
- Queres saber onde estou? Na Torre Eiffel, com os meus filhos, pela primeira vez... vim celebrar.
- E os exames...?
- Estou curado... remissão total. É um milagre.
Não consegui falar, comecei a soluçar de emoção.
- D., é o meu milagre de Lisboa... Merci.
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