Tenho uma mnemónica indissociável da atribuição do Nobel a José Saramago. Éramos um pequeno grupo de oito pessoas, em Outubro de 1998, em viagem pelo Peru. E naquela noite, na cidade de Cuzco, andávamos cansados à procura de um restaurante ainda aberto, que fosse minimamente apelativo para um jantar tardio. E ali aterrámos. E assim que o gerente percebeu que éramos portugueses, deu-nos os parabéns e foi buscar o jornal para nos mostrar a notícia. E assim soubémos, olhando a fotografia do escritor sobre a parangona da conquista do prémio Nobel da literatura, que Saramago tinha sido galardoado.
Um ano depois, em Outubro de 1999, éramos um grupo de dezasseis numa viagem nocturna de comboio, de quase dezassete horas, de Hannoi a Hué, no Vietname. Um comboio a cair de maduro, um serviço de bar miserável, um calor húmido que nos prostrava. Estava feita a promessa de uma longa e difícil noite. Alguém disse vamos beber para esquecer. Pingaram umas cervejas daqui e dali, ao que o guia Chris juntou uma garrafa do potente vinho-de-cobra. Foi um clique para a boa disposição, as anedotas, a paródia. Cantou-se muito e bebeu-se demais, o suficiente para soltar a fadista que há em mim e esgoelar-me nuns fados da Amália Rodrigues.
No dia seguinte, num telefonema para a família, soube que o meu sobrinho tinha nascido e a Amália tinha morrido.
E ontem, quando um dos meus companheiros de viagem me disse estou a ligar-te por causa do Saramago, lembro-me sempre da viagem ao Peru quando se fala dele, percebi que as memórias de viagem não são privadas, são também o memorial de uma história colectiva.